26 de abril de 2012

O Elmo

Gastei não sei quanto tempo tirando as manchas de sangue. Algumas foram difíceis de sair, mas eu insisti.

Meu irmão adorava esse elmo, apesar de ter pintado ele de um amarelo estúpido.

Se ele queria enfeitar o brinquedo, podia ter pedido ajuda pra mim. Mas quando vi a arte pronta não tinha mais o que salvar. E com aquela cara de bobo alegre dele na minha frente, o que eu podia fazer além de sorrir e dizer 'bom trabalho'? Meu outro irmão estava pronto pra fazer uma gozação, mas eu dei um tapa na nuca dele e sorri atravessado de um jeito que ele entendesse: deixa o garoto se divertir.

Dois crianções, bobos, esses meus irmãos. Mesmo assim, eu os amo como se fossem do meu sangue.

Sangue, o que vale isso? Preocupações como essa são só pra nobres, que precisam inventar o que fazer nas horas vagas e fingir ter alguma pureza que só eles tem. Pra gente é muito mais simples. Família é família, pronto.

Mas não foi sempre, sempre assim. Eu não queria eles.

Não no lugar da Wanda.

Eu não entendia porque minha irmã teve que ir embora e minha mãe não queria explicar. Isso me irritava muito, a ponto de me deixar de má vontade com ela frequentemente. Não que eu fosse enfrentá-la diretamente, mas... diabos, eu crescia e o silêncio continuava. Acabei tirando minhas próprias conclusões, o que foi uma perda de tempo, já que ela não negava nem confirmava nada.

Mas ela foi vencendo pelo cansaço e esse assunto ocupava cada vez menos a minha cabeça. Afinal eu tinha mais coisas pra fazer e, de qualquer forma...o mundo é grande. Com um pouco de sorte, a mão de Ranald...um dia, quem sabe?

Além disso, não demorou tanto pra que os meus novos irmãos quebrassem essa minha barreira inventada. Apesar de tudo eu precisava deles, da companhia deles... eu percebi depois de um tempo.

Bem, ao menos isso percebi.

Se tivesse prestado mais atenção, eu podia ter percebido também que não era culpa dela.

Sinto muito mãe, sinto muito mesmo.

Eu podia dizer que você escondeu bem, que fez tudo certo, mas a verdade é que eu fui burra, e essa minha burrice te machucou muito mais do que eu pensava que você tinha me machucado. E só agora vejo que eu não podia estar mais errada em pensar assim.

Eu não podia estar mais errada em várias coisas.

Eu pensava que tinha pouco, quase nada, mas só agora percebo que sempre fui muito rica. Deve ser algo parecido que as princesinhas sentem quando o castelo delas pega fogo com todo mundo dentro e não resta nada a não ser você e um elmo amarelo barato.

Todo mundo vai olhar esse elmo e ver ele limpo quase como se fosse novo, mas eu posso enxergar as manchas. E isso vai ser o suficiente, porque se fecho os olhos e começo a lembrar de tudo, uma voz sem palavras – é a sua, mamãe? - grita pra parar, como se me visse brincando na beira de um precipício que só eu não consigo enxergar.

Então não vou lembrar do que vi naquele dia, nem pensar nisso. Eu vou olhar para o elmo amarelo-estúpido com manchas invisíveis e minhas entranhas vão confirmar que isso é suficiente.

Suficiente pra não esquecer que meus irmãos bobos lutaram até o último suspiro. Não abandonaram a mamãe, não abandonaram ninguém, mesmo tendo pernas fortes pra correr. Se eu desistir agora, como vou poder encarar eles?

Assim eu posso seguir em frente, me equilibrando no fiapo de esperança que minha mãe me deu de presente com as últimas forças dela. O meu consolo é que, no fim, ela sabia.

Mesmo com toda minha burrice e má vontade, ela sabia que eu não deixei de amá-la nem por metade de um dia.

Um comentário:

Cinthia Goch disse...

Já te falei isso, mas merece ficar registrado. ^^
Muito emocionante mesmo! Quase chorei... =x